30 de abril de 2008

CRÔNICAS DELEUZEANAS (1)

A FELICIDADE DESORGANIZADA DO RIZOMA DE OHANA


Esta é minha cadela, a Ohana. Uma legítima pedigree da raça Cão da Serra. Cachorro de temperamento dócil e de grande sensibilidade. Não é de fácil trato, pois a vastidão de pêlos requer cuidados diários e depilações semanais. Desorganizada, espalha felicidade pela casa.

Bom, a Ohana é só para dizer que fui despertado de manhã por lambidas eufóricas. Já era hora da volta na quadra do condomínio para comprar o pão da padaria de seu Júlio, no flamengo. Acordei de mau humor decepcionando as expectativas de Ohana. Estava de Kafka para vida.

A volta na quadra foi sem brincadeiras e silêncio profundo. Pensava constantemente no evento que enfrentaria logo depois. A empresa onde trabalho havia contratado uma consultoria para motivar os funcionários. Isso era o suficiente para me deixar irritado. Um mosquito fazia-me acordar um monstro. Se existe uma coisa que tira a minha paciência é esta moda de marketeiro ensinando a ser feliz! Como uma consultoria sabe de fato o que me motiva? Só em saber que tinha que enfrentar um evento motivacional já era motivo suficiente para me deixar profundamente desmotivado.

Sob o olhar entristecido de Ohana, deitado no tapete da sala, pensei com um pedaço de pão francês na boca: devo ir, não devo ir... Foi quando escutei voz no interior do francês: deve ir, devir – fui!

Depois de alguns minutos de sufoco de tempo dilatado na Avenida Brasil, estava eu e outros sentados no auditório da empresa a espera do nosso facilitador – Como se tivesse algo complicado de fazer nesse tipo de evento! O facilitador entrou, ou melhor, a facilitadora. Vestia um blazer vinho, carregava uma pasta da Louis Viton que guardava um I-mac. Ela tinha um peirce em um dos olhos - Desculpem-me, não sei como se escreve o nome deste acessório, mas vamos deixar sem jeito, pois a mulher era adepta da semi-ótica – Perdoe-me minha Santa Ela! Mas ela, a mulher, facilitadora, já havia plantado uma árvore, tinha filhos e acabara de publicar sua tese de doutorado em Sociologia das Organizações na FGV – “O Sucesso do RH: O Rizoma Humano” – Pode um negócio deste? Depois dizem que as mulheres não complicam a vida!Imaginem uma mulher deleuzeana com mastercerd na mão - Tempo dilatado para compras! Este também era o tema do encontro. Não sobre o cartão, ou sobre a mulher em si, mas o rizoma dela. Estava desesperado. Queria que meu estado kafkaniano tivesse asas cascudas. A mulher era filha do ócio criativo, fã do Paulo Coelho e além do mais deleuzeana - Uma “marketeira holística da transdiciplinaridade criativa” (uma retórica performática fora do contexto original – sonsigno).

O evento começou com uma piada para dizer-nos que estávamos tensos e que precisaríamos relaxar. De fato estava irritado, mas o meu colega ao lado dormia que fazia bico. A mãe Dinah deleuziana deu um chute dentro e outro para fora do Maracanã. Aquela mulher jamais, inclusive em meu estado normal, teria a capacidade de me fazer relaxar. Dito e feito! A deleuzena das “corporações sem órgãos” (Um modelo de ONG da pós-modernidade do espetáculo) citou Spinoza e aplicou uma dinâmica de grupo rizomática -Perfeito! Spinoza e Deleuze e a felicidade organizada -Tudo culpa do De Masi!

A dinâmica tinha a seguinte experiência: cada pessoa recebia um barbante, que era segurado na extremidade do cordão enquanto o colega segurava a outra ponta até formar um grande círculo. Depois, cada um se movimentava no espaço, passando um por baixo do outro – Um caos aparente... Chegou um momento em que ninguém conseguia se mexer. A imagem, segundo a facilitadora, era de um rizoma humano, um coletivo híbrido... Já a minha não era de uma barata presa numa armadilha, mas de um chato no meio de pentelhos... E como já estava naquela situação, enleado, lembrei onde gostaria de estar: no rizoma da Ohana, minha fiel felicidade desorganizada...

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